parto de palavras

rosane coelho

Textos


                          Futilidades


          Ela passava dos 70, ele dos 80. Depois do café, se não estivesse chovendo, desciam da cobertura para uma caminhada pelo calçadão.

          Ela, passo firme, ia à frente: loira, maquiagem leve, sem rugas nem expressão. Pela coleira, levava Rick: um poodle toy branquíssimo, limpíssimo, cheirosíssimo, coquetíssimo.

          A uma pequena distância, que aumentava gradativamente, valendo-se do auxílio de uma bengala, seguia o marido: cabelos branquíssimos, acabadíssimo.

          Naquela manhã meio embaçada, completado o trajeto rotineiro, com Rick ao colo, ela atravessou a rua e retornou ao apartamento, deixando a porta encostada para que o marido entrasse sem a incomodar.

          Subiram para o terraço. Ela se acomodou na espreguiçadeira e abriu a revista semanal de futilidades, enquanto o cãozinho se distraía entre bolinhas e mordedores. Entediada, cochilou.

          Despertou, assustada, com o telefone tocando insistentemente.

          Era do hospital público para onde seu marido havia sido removido em virtude de um atropelamento. O estado dele inspirava cuidados. Necessitavam, com urgência, da presença de um familiar.

          Afagando o cãozinho, a mulher desligou o telefone e voltou para a espreguiçadeira.

          No livro de registro de comunicações do hospital, a seguinte anotação: família comunicada; esposa aguarda a chegada da acompanhante do Rick (neto?).
Rosane Coelho
Enviado por Rosane Coelho em 18/09/2005
Alterado em 28/12/2005


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